Uma grande amiga minha (que após sua formatura na USP amargou dois anos de subemprego e se cansou e foi lavar prato num bar podre em Londres) escreveu um texto muito bom. Reproduzo-o aqui, sem a devida autorização, pois está em algum lugar incomunicável na Costa Rica (para onde, após amargar dois anos de subemprego em Londres e se cansar, foi, para procurar outras oportunidades em um outro subemprego que, pelo menos, alivia sua consciência):
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Nós, cavalos?
Como já devo ter contado, os irlandeses compartilham uma paixão com os ingleses: a corrida de cavalos. É bem provável que ela seja até mais importante pros irlandeses. Na verdade, o pessoal aqui das ilhas tem um probleminha com jogo, sabe? Eles apostam em absolutamente tudo, incluindo a cor do chapéu que a rainha estará usando na corrida real (Royal Ascot), em que ela entra de carruagem acenando pros súditos!!! E tô falando sério, nas casas de aposta - que abundam em toda a cidade - era possível pôr dinheiro até nisso. Meus amigos apostadores sabem quem ganha com isso (as casas de aposta, claro!), mas a atração é irresistível.
Voltando à corrida de cavalos, ela é meio que um senso comum entre os irlandeses (pelo menos os que freqüentam a Maggie) e portanto eu sou obrigada a assistí-la quase diariamente por horas a fio. Aparte algumas coisas práticas que aprendi, tipo o que quer dizer 15-2, dicas de como apostar e nomes ridículos pros coitados dos animais, essa mania bretã também me levou a refletir sobre a vida que levamos.
Vejam só: os pobres dos cavalos são treinados por gente especialista por anos e anos, e aquilo que naturalmente lhes daria prazer, que é correr por aí, torna-se sua obrigação e sua sina, a razão de suas vidas. Alguns cínicos alegam que os cavalos gostam naturalmente de correr e que portanto o turfe não representa maus tratos aos animais. O que eu tenho visto me faz tirar conclusões bem diferentes. É necessário empurrar a maioria dos cavalos à força para as baias de largada, chegam a vendar os olhos de alguns e ocasionalmente um se revolta a ponto de não o conseguirem fazer entrar na baia. Porém uma vez que estão dentro daquele espacinho minúsculo e é dada a largada, TODOS eles correm como uns desesperados, como se ultrapassar os demais fosse a única coisa que importasse. Claro que apenas um vence, e então no melhor dos casos ele ganha água, uma coberta chique e alguns segundos na TV, se a corrida for mesmo importante. O jóquei, que também foi treinado por anos e anos e apenas sentou sua bundinha no cavalo vencedor, é quem sobe ao pódio, pega o troféu, dá entrevista e bebe o champanhe, juntamente com o treinador e o dono do cavalo.
E então de repente eu me peguei pensando: cara, que merda! Nós também somos ensinados nossa vida toda a correr para chegar na frente dos nossos colegas, nos ensinam a jogar o jogo como se não houvesse outro caminho possível - e nós acreditamos realmente que não há. Nos treinam por anos e anos a trabalhar longas e monótonas jornadas, e atividades que de outra forma talvez fizéssemos por prazer tornam-se o sentido último da nossa existência e nossa desgraça pessoal. Muitos de nós têm de ser empurrados para as baias à força, mas uma vez estando lá corremos como uns desesperados! Jogamos o jogo, corremos a vida toda sem nem mesmo saber o porquê, só porque assim nos ensinaram, e no fim não somos nós que bebemos o champanhe. Estão lá o jóquei e o treinador na TV, e para nós água.
Meu momento favorito é quando o jóquei cai. Muitas vezes o cavalo continua na fúria competitiva para a qual foi adestrado e chega mais leve em primeiro - o que não vale nada, cavalo sem jóquei não conta, o que já diz muito. Mas às vezes, bem às vezes, ele simplesmente segue num galope libertado, no seu ritmo, escolhendo outro caminho. É aí que eu vibro e quase imagino a sensação de liberdade que ele deve estar sentindo.
Será que um dia, nós... Será?
É realmente incrível a semelhança... mas eu acredito que as motivações humanas, em princípio, são (eram?) diferentes das de um cavalo, embora a sociedade tente, cada vez mais, transformar nossas motivações e esperanças nas mesmas que cavalo possui. Eu explico.
ResponderExcluirÉ claro que o desejo à liberdade nasce com todo animal (e talvez não só com eles), então a questão aqui não é a existência da esperança, mas o tipo de esperança.
Originalmente os seres humanos sonhavam em atingir a liberdade seguindo as regras da prisão que lhes foi imposta - e, um dia, se livrar da dependência do trabalho; alguns mais revoltados jogam na loteria (um instrumento criado para acalmar os revoltados e evitar(?) uma consulsão social).
Mas e o cavalo? O cavalo corre para se livrar do incômodo, para ganhar a água e talvez um pouco de comida. Sempre foi assim. A liberdade é um sonho longínquo, mas eu não consigo acreditar que um cavalo pense em sua aposentadoria, ou que correr melhor vai levá-lo a aposentar mais rapidamente.
O que mais me preocupa é que, com o tempo, a sociedade ocidental está impondo que tenhamos uma esperança mais parecida com a do cavalo do que com aquela esperança original do ser humano.
Muitas pessoas esperam nunca se aposentar, ou simplesmente não pensam nisso. Importam-se apenas com o agora. A idéia da "máquina" é fazer com que as pessoas consumam na janta tudo o que produziram no almoço, de forma a manter a sua dependência eternamente. E se quiserem consumir mais, terão que produzir mais. E se produzirem mais em um dado almoço, o sistema fará com que sua esperança seja gastar todo o adicional na janta subseqüente.
Estamos virando cavalos que vão ter de correr até cair mortos. Ou até morrer de fome, quando não pudermos mais correr.
Um destino nefasto que nem os cavalos, em geral, têm.
PS: A palavra que tive que digitar para publicar o comentário foi "torfe", bizarramente similar a "turfe".
Se vc fica se perguntando onde vc deixou seus neurônios, imagina se estivesse no meu lugar. Emburrecer é pouco. Me identifico com a história da sua amiga, até pq pelo que descreve temos uma vida mais ou menos parecida.
ResponderExcluirBjo!