F. vivia em uma casa térrea. Havia um pequeno jardim onde hoje há um Honda Fit e F. plantava flores e ervas aromáticas naquele pedacinho de terra. O piso de madeira era encerado religiosamente a cada quatorze dias, e as tapeçarias eram lavadas uma vez por mês. O sol da tarde esquentava o seu quarto, que sempre tinha as venezianas abertas pela manhã. E, à noite, quando F. se recolhia, o barulho do vento assoviando nas frestas de sua janela era o único som audível, exceto pelo ronco ocasional de algum familiar. O sono de F. era pesado. Custava a dormir, mas depois que estava embalada nos braços de Morfeu, só acordava ao ruído de seu despertador. Todas as noites, antes de se deitar, F. dava corda no mecanismo, exceto às sextas e aos sábados.
Por sobre o córrego, logo abaixo, havia uma pequena ponte de madeira por onde F. passava todos os dias no caminho para o comércio onde trabalhava, a sete quadras dali, cumprimentando os homens que ali pescavam ocasionalmente quando os via.
Um dia chegaram os tratores, para o encanto dos meninos do bairro.
Com a sujeira que a obra trazia pelo vento, seus tacos de madeira passaram a ser encerados uma vez por semana. Com a tapeçaria, primeiro F. tentou aumentar a frequência da limpeza, mas acabou por desistir e guardou tudo no quartinho da bagunça.
Alguns meses depois, o córrego estava canalizado e alguns outros meses depois, uma avenida o cobriu. Ah! O progresso!
F. precisou comprar um automóvel, pois era perigoso cruzar a avenida. Além dos veículos, trombadinhas se aproveitavam do sinal demorado e assaltavam os pedestres que aguardavam na ilha de tráfego para atravessar o restante da avenida.
Por causa do automóvel, F. precisou de um novo emprego para reformar seu jardim e transformá-lo na garagem que é hoje, pediu demissão do comércio local e foi trabalhar na Rua Quinze de Novembro, em um prédio de escritórios. Suas plantas foram colocadas em vasos e morreram algumas semanas depois.
Quando F. se deitava, a avenida ainda estava acordada. Carros, caminhões, ônibus, motoristas distraídos que freavam repentinamente diante do semáforo fechado, a orquestra cacofônica cortava e marretava a noite. Custava a dormir e passou a tomar florais para ajudar a relaxar. Acordava cedo, pois precisava ir ao centro da cidade todos os dias. Um despertador já não era suficiente. F. deixava dois: um no criado-mudo, ao alcance da mão, e outro do outro lado do cômodo, para que fosse obrigada a se levantar para desativá-lo.
As janelas receberam grades depois que entraram em sua casa para roubar eletrônicos. E as venezianas eram raramente abertas.
A cada dia um vizinho percebia a necessidade de ter um carro e o trânsito local piorou. F. passou a sair de casa cada vez mais cedo e a chegar cada vez mais tarde.
Sem tempo para cuidar da casa, F. contratou uma faxineira para vir uma vez por semana. E, para pagar a faxineira, F. passou a tentar galgar posições cada vez mais altas no prédio de escritórios onde trabalhava. Fez supletivo. Fez faculdade.
O silêncio que nunca foi apreciado se fora. Mas F., que jamais o percebeu, só sabe que sua vida é uma porcaria.
E a madrugada convidou Patricia a escrever...
ResponderExcluirQue bom que F. é o primeiro nome e nao existe nenhum Cristiane antes, mas isso seria uma outra história. Adorei ler o texto em meu iniciozinho de manha...Essa coisa quase imperceptível (para quem está dentro)da mudanca e as adaptacoes que somos obrigados a fazer em nossa vida a medida em que o "propresso" chega. Voce descreveu esse processo (mudanca/adaptacao) de forma tao verdadeira...
Obrigado
ahahahahah o final é ótimo "sua vida é uma porcaria" ahahaha muito boa essa OBS rs...
ResponderExcluirKisu!